Canto dos contos

Os Guardiões

Escrito por Guilherme Alves

Uma estranha descoberta, um ato aparentemente inofensivo, e uma vida é alterada para sempre

O ano era 1980, e a multidão se aglomerava na praia para ver a estranha criatura que havia sido trazida pela maré. Parecia uma mistura de peixe com macaco, mas tinha escamas como um réptil, e a boca lembrava a de um sapo. A única certeza era a de que estava morta, e algumas crianças se divertiam cutucando-a com varetas. Poucos momentos depois de ela ter sido descoberta, chegaram os militares e a levaram embora. Sei bem do que estou falando, pois eu era um deles. Não somente isso, mas fui eu o responsável por recolher a criatura, colocá-la em um recipiente, e guardá-la até que fosse entregue em nosso quartel. Depois disso, nunca mais a vi.

Evidentemente, não pude comentar com ninguém o ocorrido, nem mesmo com minha família. Tudo foi rapidamente desmentido, a versão oficial foi a de que se tratava de uma foca deformada e parcialmente putrefata, e logo todos se esqueceram de que, um dia, aquela estranha criatura veio dar na praia. Todos, exceto eu.

Começou de repente. Em certos momentos do dia, eu pensava ver algo no canto do olho. Se parecia com um cachorro, mas, quando eu virava a cabeça para olhar, não havia nada ali. Passei semanas vendo esse “cão fantasma”, até que fui enviado para uma missão no interior, tendo de dormir em uma tenda na mata, e ele desapareceu. Quando retornei ao quartel, porém, voltei a vê-lo.

Com o passar do tempo, a alucinação foi ficando cada vez pior. De início, eu apenas achava que o cão estava ali, mas sem fazer nada; após meu retorno, toda vez que ele aparecia, tinha a nítida sensação de que iria me atacar. Ao virar a cabeça em sua direção, porém, nunca havia nada ali. Isso foi me enervando, até que um dia, armado, disparei na direção do suposto animal, tamanha foi minha impressão de que ele havia avançado em mim. Ninguém se feriu, mas fui enviado ao médico do quartel, que achou melhor me colocar de licença.

Decidi passar o tempo da licença com meus pais, esfriar a cabeça, mas de nada adiantou. Não somente frequentemente tinha a impressão de ter visto o tal cachorro, como passei a sonhar com ele. Nos meus sonhos, não se tratava de um cão comum, mas de uma criatura demoníaca, como se estivesse virada do avesso, com a carne e os ossos visíveis do lado de fora. Rosnava e latia para mim enquanto babava, e parecia que iria me atacar a qualquer momento. Um dia, deu um salto em minha direção, e acordei com um berro.

Diante do ocorrido, acabei contando o que vinha sofrendo para meu pai, o que foi bom, porque, o avisando toda vez que a criatura surgia no canto do meu olho, ele percebeu um detalhe que eu tinha deixado passar: eu só vislumbrava o cão quando estava próximo aos cantos das paredes, sendo essa a razão pela qual não o vi enquanto estive na mata. Mais ainda, estava solucionada a causa dos meus pesadelos: minha cama em casa ficava no canto do quarto, enquanto no quartel eu dormia em um beliche no centro do cômodo. Arrumamos o quarto de forma que a cama ficasse bem no centro, e o monstro parou de me visitar durante a noite; acordado, porém, toda vez que passava próximo a um canto, tinha a impressão de vislumbrá-lo.

De posse dessa importante informação, tentei retomar minha vida normal, mas descobri que isso seria bem mais difícil do que eu pensava. Mesmo sabendo da possibilidade de o cão aparecer, frequentemente eu me assustava nos momentos mais impróprios. Nunca me acostumei com sua presença, não entendia por que ele me perseguia, e, conforme o tempo passava, ele parecia ficar mais e mais agressivo. Já estava à beira da loucura, e acabei tendo de pedir dispensa antes que causasse um sério acidente.

Ao voltar para casa, descobri que meu pai, durante o tempo em que retornei ao quartel, decidiu pesquisar sobre a estranha aparição. Falou com pessoas ligadas ao ocultismo, visitou livrarias que eu sequer imaginava que existiam, mas acabou encontrando a informação de que eu precisava: aparentemente, esses animais, que eu confundia com cães, eram uma espécie de guardiões da passagem do tempo, atacando qualquer um que tentasse alterar a história. Ao identificar o cheiro de um viajante do tempo, eles se materializam, o atacam, e, usando uma longa língua, como a de um tamanduá, sugam seus fluidos até que não restem vestígios do infrator. Os cantos das paredes são suas passagens para nosso mundo, por isso eu sempre os via ao passar por um deles.

A leitura de tal texto me deixou ainda mais atemorizado, mas havia alguns detalhes que pareciam não se encaixar no que eu vivenciava: primeiro, o livro deixava claro que os guardiões, ao encontrar sua presa, não paravam por nada até alcançá-la, e que aquele que vê um deles não sobrevive durante muito tempo. Ora, havia pelo menos um ano que eu via vários deles, e ainda estava aqui. Segundo, todos os meus fluidos ainda estavam no lugar, e eu sequer tinha visto a tal língua das criaturas. Mas, em terceiro lugar e o mais importante, eu não era um viajante do tempo. Até onde eu soubesse, jamais havia me visto em condições de alterar a história.

Foi então que, num lampejo, me lembrei da criatura na praia. E, por mais fantástica que fosse essa explicação, foi a única na qual consegui pensar: tratava-se de um viajante do tempo, e, por tê-la recolhido, fiquei impregnado de seu cheiro, que atraiu os cães – que, como eu não era eu mesmo um viajante do tempo, se viam incapazes de me destruir. Para me livrar de meu tormento, portanto, restava responder à pergunta: como se livrar do cheiro de um viajante do tempo?

Confesso que ainda não encontrei a resposta. Já faz 40 anos que convivo com a presença dos guardiões, e, embora jamais tenha me acostumado, pelo menos parece claro que eles também jamais vão conseguir me pegar. Moro em uma casa especialmente projetada, com paredes arredondadas, sem cantos, e pesquiso incessantemente alguma forma de interromper sua caçada, mas tudo leva a crer que meu caso é único no mundo. Cheguei a cogitar tentar encontrar a criatura da praia e entregá-la a eles, mas, estranhamente, meus colegas, que estavam comigo quando a recolhi, parecem sequer saber do que estou falando. Minha hipótese é a de que os guardiões também chegaram a ela, e, apagando-a da existência, a apagaram também da memória de todos. Exceto da minha. Parece que o destino da criatura, dos guardiões e o meu está ligado até o fim da minha vida.

Sobre o autor

Guilherme Alves

Nascido numa tarde quente de verão no Rio de Janeiro, casado aparentemente desde sempre, apaixonado por idiomas (se pudesse, aprenderia todos). Professor de inglês porque era a única profissão que parecia fazer sentido, blogueiro porque gosta de escrever desde que a Tia Teteca mandava fazer redação. Coleciona DVDs, tem uma pilha de livros que comprou mas ainda não leu maior que uma pessoa (de baixa estatura) e um monte de jogos de tabuleiro que não tem tempo de jogar. Fanático por esportes, mas só para assistir, porque é um pereba em todos eles. Não se pode ter tudo na vida.

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