Canto dos contos

O Chamado – Parte 1

Escrito por Guilherme Alves

Uma história de horror lovecraftiano em quatro partes começa com uma descoberta acidental na Floresta da Tijuca

_ Acho que é um urso.

_ Ah, é? Só que não existem ursos no Brasil – retruquei.

_ Vai ver fugiu de um circo, sei lá…

Aquela pegada intrigava a nós quatro. O que era para ser apenas mais um passeio tranquilo na Floresta da Tijuca acabou se tornando quase uma aventura, com um misto de excitação e mistério pela descoberta de uma impressão no solo que, aparentemente, não havia sido feita por nenhum animal conhecido.

_ Você sabe que eu sou zoólogo – continuei – e, definitivamente, isto não é uma pegada de urso!

_ Um gorila, talvez?

_ Também é pouco provável. Aliás, acho que nunca vi uma pegada assim em toda a minha vida. Fiquem aqui tomando conta para ninguém desfazê-la, vou até em casa buscar um molde de gesso.

_ Nosso passeio, então, foi para as cucuias – reclamava minha namorada.

Realmente, o passeio foi para as cucuias. Eu não podia perder a oportunidade de recolher aquela pegada única. Talvez eu até mesmo descobrisse uma nova espécie, um parente latino-americano do pé-grande ou coisa parecida.

_ Sabia que não deveríamos ter nos embrenhado pelo meio do mato – prosseguiu em sua reclamação. Que ideia de jerico…

_ E se foi só um engraçadinho que imprimiu isso aqui no chão para pegar trouxas como nós?

_ Então ele fez um excelente trabalho – respondi. A disposição das bordas, o meio mais fundo, isto indica que houve distribuição do peso quando a criatura pisou. E, pela profundidade, ela deve pesar uns 500 quilos no mínimo…

_ Você está começando a me assustar… E se o bicho voltar enquanto estivermos aqui esperando?

_ E se ele voltar enquanto estivermos passeando? – repliquei.

Alguns minutos depois, voltei com o molde de gesso. Também aproveitei e tirei várias fotos. De posse desse material, ao voltar para casa, comecei a estudar a estranha pegada.

O primeiro passo era me certificar de que realmente não pertencia a nenhum animal conhecido. Comparei-a com todas as pegadas presentes nos livros que possuía. Passei várias noites em claro. A excitação da possível descoberta de um espécime novo tirava meu sono. Em seguida, decidi compará-la com pegadas de animais já extintos. Talvez se tratasse de um raríssimo fóssil vivo.

Nenhuma das pegadas de meus livros bateu com meu molde. Já estava preparado para levar minha descoberta à sociedade científica, quando finalmente minha excitação foi substituída pela racionalidade.

E se, realmente, fosse uma pegada plantada? E se fosse apenas um animal deformado, um defeito de nascença? Ao invés de aclamado por uma nova descoberta científica, eu seria ridicularizado por tanta ingenuidade. Talvez fosse melhor voltar ao local da pegada e ver se existiam mais delas, ou alguma outra evidência da existência do animal, como fezes ou frutas roídas.

No dia seguinte, enquanto ia para o trabalho, passei em frente a um sebo. Sabem aquelas coincidências que a gente logo imagina “isso foi feito para este momento”? Pois então, logo na porta, estava exposto um livro, “Pé-grande no Brasil, mito ou realidade?”. Espantado com o fato, decidi entrar e comprar o livro. Talvez existisse alguma foto de pegadas, ou relatos de pessoas que o avistaram na Floresta da Tijuca.

O livro, porém, estava em péssimo estado. Várias folhas faltando, outras por demais amareladas. O livreiro disse que o conseguiu de um cliente cuja casa houvera sofrido uma enchente, ou coisa parecida. Após o episódio, tal cliente doou todos os seus livros para o sebo, e saiu do país. Deste, somente a capa estava boa, e, por ser uma capa bonita, foi para a vitrine, para enfeitar.

_ Mas nós temos outro que trata deste assunto… Não é o mesmo, mas também fala do pé-grande brasileiro. Vejam só, que coisa… O senhor acredita que possa existir um “abominável homem das neves” aqui no Brasil, que nem neve tem?

_ Bom, na verdade o pé-grande e o abominável homem-das-neves são criaturas diferentes, mas deixa pra lá… Pode me conseguir o outro livro, por favor?

_ Pegue o senhor mesmo. Está ali, na estante amarela.

Me dirigi à tal estante. Estava uma bagunça. Procurando livro por livro, não encontrei o tal do pé-grande, mas outro exemplar me chamou a atenção: um livro de capa de couro, muito antigo, bem amarelado, cujo nome na lombada dizia “Monstros e sua espécie”. Por alguma razão, senti um impulso de comprá-lo. Talvez nele houvesse alguma referência à criatura que pesquisava. Esqueci o pé-grande brasileiro e levei-o ao livreiro.

Após uma breve negociação, pois o tal livro não tinha preço na capa, levei-o para casa antes de ir ao trabalho. O livro não possuía figuras, talvez não servisse para que eu identificasse a pegada, mas poderia trazer valiosas informações sobre qual criatura eu poderia encontrar quando voltasse ao local da pegada para mais pesquisa. Ou pelo menos foi isto o que me passou pela mente durante todo o meu dia de trabalho. Mal conseguia me concentrar, ansioso por chegar em casa e começar a ler o livro.

Mal sabia eu que este simples e inocente ato mudaria minha vida para sempre.

Este texto continua na semana que vem.

Sobre o autor

Guilherme Alves

Nascido numa tarde quente de verão no Rio de Janeiro, casado aparentemente desde sempre, apaixonado por idiomas (se pudesse, aprenderia todos). Professor de inglês porque era a única profissão que parecia fazer sentido, blogueiro porque gosta de escrever desde que a Tia Teteca mandava fazer redação. Coleciona DVDs, tem uma pilha de livros que comprou mas ainda não leu maior que uma pessoa (de baixa estatura) e um monte de jogos de tabuleiro que não tem tempo de jogar. Fanático por esportes, mas só para assistir, porque é um pereba em todos eles. Não se pode ter tudo na vida.

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