Canto dos contos

Volta às Aulas

Escrito por Guilherme Alves

Quem nunca teve vontade de fugir de seus problemas voltando para uma época mais simples?

Aconteceu num dia bem ruim. Estava tendo sérios problemas no trabalho – achava, inclusive, que poderia ser demitido brevemente – e, na volta para casa, tinha de passar por uma loja de material de construção por causa de um vazamento em meu banheiro que inundou o apartamento do vizinho. Por causa disso, saltei em um ponto diferente do que estava acostumado, e, andando pela rua com mil problemas na cabeça, acabei me perdendo. Ou quase, pois, quando dei por mim, estava em frente à escola onde havia feito meu Ensino Médio.

Desde que concluí os estudos, jamais havia me interessado por voltar a visitá-la. Aliás, sequer sabia se ela ainda existia – mas existia, ali, diante de mim, idêntica a como eu me lembrava, como se o tempo não tivesse passado um segundo sequer. Poderia jurar que o velhinho sentado ao lado do portão ainda era o Seu Etevaldo, embora isso provavelmente fosse impossível, visto sua idade quando eu ainda era um adolescente. De toda forma, surpreso por ter caminhado justamente até aqui, não resisti, e decidi entrar rapidamente para ver se, por dentro, ela havia mudado muito.

Minha primeira surpresa foi ver que ela não havia mudado absolutamente nada. Tudo estava no mesmo lugar de mais de vinte anos atrás, todos os detalhes correspondiam exatamente à minha memória. Minha segunda surpresa foi ver que, quando me dirigi ao pátio, meus antigos colegas vieram falar comigo. No fundo de minha mente eu sabia que aquilo era impossível, mas me portava com estranha naturalidade. Conversei com gente que não via há duas décadas, que sequer sabia o que estariam fazendo da vida agora, como se ainda vivesse na época em que éramos amigos e estudávamos juntos. Mais que isso, de repente tocou o sinal, me dirigi com eles para a sala de aula com toda a naturalidade do mundo, e, ao me sentar, percebi que eu também era um adolescente como eles. Assisti às aulas naturalmente, conversei um pouco mais com meus amigos, chegou a hora da saída, me dirigi ao portão e, assim que pisei na rua, era um adulto novamente. Olhando para trás, vi Seu Etevaldo me dando um tchauzinho e, um tanto perplexo, segui meu caminho.

Passei o dia seguinte inteiro no trabalho pensando nisso, e não resisti: na volta para casa, fui uma vez mais à escola, e decidi entrar novamente, para tirar a dúvida. Mais uma vez o roteiro se cumpriu: eu era um adolescente, vivendo minha vida escolar, convivendo com meus amigos, como se tudo aquilo fosse uma novidade. Na hora da saída, ao voltar para a rua, era novamente um adulto, com todos os problemas que minha nova vida acarretava.

Diante desses problemas, aliás, não tive força de vontade para resistir a essa tentação. Todos os dias, na volta do trabalho, eu precisava passar pela escola, precisava entrar, reencontrar meus amigos, passar alguns momentos sem as preocupações da vida adulta. Vazamento no banheiro, contas a pagar, cortes no emprego, tudo isso era substituído por fórmulas matemáticas, tentar cativar a atenção das meninas, fugir da zoação da turma rival. Problemas que, naquela época, pareciam tão grandes, mas que hoje empalideciam diante dos que eu tinha para resolver.

Se meu emprego já poderia estar ameaçado, aliás, agora isso era uma certeza. Passava o dia sonhando com a escola, não produzia o quanto podia, chegava a sair mais cedo. Em casa, a situação não era muito diferente: chegava mais tarde todos os dias, mal prestava atenção em minha esposa, cheguei a cogitar ir à escola num fim de semana, só para ver o que aconteceria caso eu tentasse entrar.

Minha esposa, evidentemente, desconfiava de meu comportamento. Um dia, quando cheguei em casa depois da escola, me esperava com lágrimas nos olhos. Disse ter certeza de que eu havia arrumado uma amante, e que somente isso justificaria meu comportamento. Decidi abrir o jogo com ela, mas é claro que ela não acreditou em mim. Sem saber muito bem o que fazer, disse que poderia provar: no dia seguinte, na volta do trabalho, ela me encontraria na porta da escola, e eu entraria com ela.

Depois dessa promessa, achei que não havia feito um bom negócio. Conheci minha esposa anos após terminar a escola, ela morava em outra cidade na época em que eu estava no ensino médio, e, pior que isso, ela era sete anos mais jovem que eu. O que aconteceria com ela se entrasse comigo? Continuaria adulta? Se transformaria em uma criança? Será que, de fato, entrar com ela na escola provaria que eu não estava louco nem mentindo?

Nervoso, mal consegui dormir. No dia seguinte, no trabalho, meu desempenho foi pior que nunca. Comecei a achar que marcar com minha esposa na porta da escola havia sido um erro, mas agora não havia mais volta. Tudo o que eu poderia fazer era entrar com ela, e torcer para que nada de ruim acontecesse.

Ao chegar em frente à escola, porém, tive uma surpresa ainda maior do que a daquele dia no qual a reencontrei: minha esposa já estava lá, braços cruzados, cara de brava. A escola, entretanto, não. Quer dizer, estava, mas com aparência de há muito abandonada e condenada. Não tinha telhado, o mato tomava conta de tudo, as portas e janelas estavam pregadas com tábuas de madeira, o portão, onde eu sempre cumprimentava Seu Etevaldo, completamente enferrujado, trancado com uma grossa corrente e um enorme cadeado.

Sem saber o que fazer, desatei a chorar. Minha esposa, antes brava, agora se mostrava genuinamente preocupada. Me fez prometer consultar um médico, disse que iria comigo, que superaríamos isso juntos. Durante alguns momentos, duvidei genuinamente de minha sanidade. Já fazia semanas que eu frequentava a escola diariamente após o trabalho, não era possível que tudo aquilo fosse fruto de minha imaginação.

Em um ato de desespero, levantei-me no meio da noite e peguei um táxi. Eu precisava ir à escola sozinho, ver se assim ela me aceitava. Ao chegar lá, tudo estava da mesma forma, destruído, cheio de mato. Chorando, me sentei no chão, recostado contra o portão. Acabei pegando no sono.

Acordei com Seu Etevaldo me cutucando, avisando que eu iria chegar atrasado. Me levantei num pulo, entrei na escola, lá estavam meus amigos, da forma como havia ocorrido durante as últimas semanas. Não sei qual a explicação para isso, mas pouco me importa. A única certeza que tenho é a de que, hoje, na hora da saída, não vou voltar pra casa.

Sobre o autor

Guilherme Alves

Nascido numa tarde quente de verão no Rio de Janeiro, casado aparentemente desde sempre, apaixonado por idiomas (se pudesse, aprenderia todos). Professor de inglês porque era a única profissão que parecia fazer sentido, blogueiro porque gosta de escrever desde que a Tia Teteca mandava fazer redação. Coleciona DVDs, tem uma pilha de livros que comprou mas ainda não leu maior que uma pessoa (de baixa estatura) e um monte de jogos de tabuleiro que não tem tempo de jogar. Fanático por esportes, mas só para assistir, porque é um pereba em todos eles. Não se pode ter tudo na vida.

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