Olá, tudo bem?
Faz um tempão que não conversamos. Essa missiva sem propósito e cheia de desconcerto é para que saiba da minha falta de novidade.
A casa está uma bagunça, a poeira acumula nos cantos das paredes e as aranhas já conquistaram usucapião debaixo da escada.
As plantas estão murchando, ficaram roucas de tanto me pedir para aguá-las, ao menos um pouquinho. Finjo não ouvir, ando tão ocupada!
Os bichos andam soltos no quintal e na minha cabeça. Só hoje percebi que o gato abateu um passarinho na sala de estar. Debaixo do sofá ficaram as penas como provas do crime. Acho que farei um desenho do corpo ausente do pássaro para quando a perícia chegar. “Sem corpo, sem crime”, como pensavam os milicos na ditadura militar e um certo goleiro que criava cachorros famintos.
Os meninos estão estudando no quarto, silenciosos e sonolentos desejam estar no pátio da escola entre risadas e namoros tímidos.
Ele foi trabalhar como quem atravessa um labirinto e uma corrida de obstáculos. Como sofre em ter que refrear o papo furado, seu esporte preferido. Como é possível encontrar um amigo na rua e não abraçar ou dar beijinhos no rosto, trocar confidências insólitas, contar piadas? Difícil lembrar que estamos de máscara e não vemos o sorriso do outro.
Ouço o barulho na cozinha do vizinho, imagino o cardápio e o critico mentalmente por receber tantas visitas.
A cidade segue barulhenta em seu mutismo. Em nosso planalto, tão longe do nível do mar, tudo é rarefeito. Nos comportamos como inimigos ferrenhos. Até briguei com meu amigo de longa data. Que patéticos cidadãos de país nenhum somos todos nós! Queria ligar para ele e tentar um entendimento, falar a mesma língua outra vez.
Semana passada, o prefeito faleceu de covid-19. Eu nem sabia que era possível ficar tão triste pelo desaparecimento de pessoas que pensam tão diferente de mim. Sim, é possível e necessário. A morte é o mais natural dos fenômenos e o mais desconcertante.
Tenho medo de ser o próximo obituário. De não poder continuar, apesar de estar fazendo a minha parte. Ainda nem escrevi aquele livro. Há muitas árvores esperando para serem transplantadas para a terra fértil lá do sítio. Vivo sonhando com um lindo bosque recheado de flores diversas brotando do mato. As flores sem nome e pedigree me comovem ternamente. Quero ter tempo de plantar uma biblioteca para a garotada. Preciso de mais tempo. Do implacável tempo que nos escapa como água na peneira.
Abro a janela do sobrado e dou uma pausa para ouvir o canto dos pássaros. A essa hora parecem conversar como quem sabe das coisas e pode planar a céu aberto. Eles gostam de andar em bando, como nós. Tão frágeis e lindos!
O dia está um pouco nublado e tenho sede de suco de laranja com gelo e sem açúcar. A conta do mercado está cada vez mais alta e a sacola, mais vazia.
É só.
Fico aguardando notícias suas. Por favor, sobreviva.
Abraços.
Bela carta! E uma catarse comovente…