Canto dos contos

Pedido

Escrito por Letícia Nascimento

Se enxergar de forma distorcida num reflexo é ficar cego à sua real essência.

Ela queria se enxergar pelos olhos que não fossem de um espelho. Talvez, com os olhos desfocados de um míope ou imaginativos de um artista abstrato, ela se sentiria melhor em sua pele.

Pele e ossos.

Como é difícil carregar ossos, pensava. Pesados, compridos, tortos… às vezes, queria ser feita de algodão ou qualquer outra coisa moldável. Queria poder remodelar seu corpo como se fosse uma massa de pão. Deixar tudo simétrico e liso.

Mas os pães crescem. No forno, podem queimar.

De relance, se viu novamente naquele espelho no fim do corredor. Queria se ver melhor, então acendeu a luminária. Chorou.

É difícil fugir de si diante de um espelho. Não parece haver saída.

Em frente àquela superfície de vidro, olhos nos olhos, ela se lembrava de todos os mantras, conselhos, elogios… Mas nada bastava, já que a maior voz que escutava, aquela que saía da garganta e ressoava em seus ouvidos, todos os dias, já havia a convencido.

Respirou fundo, enxugou as lágrimas na manga da blusa e apagou a luz. Assim estava melhor.

Lá fora, o sol ardia e tudo o que ela queria era ter um dia feliz. Calçou as sandálias jogadas aos pés do sofá, colocou os óculos escuros e abriu a porta para ele.

– Oi, linda.

Sorriu. Quase por obrigação. Não acreditou, mais uma vez. Dentro do carro, cabelos ao vento, aquela música de fundo que a fazia lembrar de quando o conheceu e se apaixonou por ele… Se viu no retrovisor de relance, fugiu os olhos para encontrar os dele, reconheceu um tanto de sorte e boa vontade do universo e fez um pedido, da mais profunda camada do seu coração:

Amor próprio, apareça, por favor”.

Sobre o autor

Letícia Nascimento

Jornalista por formação, redatora por rotina, roteirista de alma, deseja um dia ter a audácia de se intitular escritora. Ama bebês, cachorros e fofuras em geral. Cinéfila que assiste de tudo, viciada em séries e leitora apaixonada. Possui todos os distúrbios possíveis do sono, luta contra a ansiedade crônica e a fibromialgia com humor e acidez. Parece jovem mas joga gamão nas horas vagas.

2 comentários

  • Talvez o caso de amor mais difícil seja consigo mesmo. As amarras são tantas… Em pensar que só recentemente o ser humano pode mirar-se ao espelho. Durante milênios só conseguia mirar fragmentos de si no reflexo da água. Estavam tão desacostumados de se ver que Narciso pulou nas águas em busca de si, foi paixão à primeira vista. Valeu, Letícia. Peguei carona contigo e no teu retrovisor e me fiz o mesmo apelo.

    • Pois é, Juliana. Às vezes preciso fazer esse pedido também pra relembrar de como é bom se gostar! Obrigada pela leitura e pelo comentário.

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